A vida nos oportuniza uma experiência nova, convida-nos a um novo agir, interferindo por conseguinte em nosso sentir e em nosso pensar.
Esta sexta-feira santa certamente não será como qualquer outra. E talvez isso a aproxime mais da realidade do significado desta data. Nesta sexta-feira santa somos convidados ao isolamento, passo importante para o aquietamento. Fator essencial para que a vivência de Jesus neste dia não tenha sido em vão. Para que possa nos propiciar uma reflexão, uma vivência interior.
Podemos acreditar que Jesus morreu na cruz pelos nossos pecados? E por crer nisso, consciente ou inconscientemente continuar pecando para fazer valer seu sacrifício? Claro, e podemos assim nos sentir ligados a Cristo, e sem contudo nos relacionarmos com os seus ensinamentos, nos mantendo em uma atitude leviana perante ao próximo, perante à vida.
Podemos então crer em Jesus como um mestre espiritual, e com coragem ver a nós mesmos na condição de discípulos? Certamente, mas será necessário que vivenciemos agora a sexta-feira santa como um momento de reflexão, onde pretendemos encarar em nós o que evitamos olhar a muito tempo, ao invés de nos preocuparmos com o preço do bacalhau e com os ovos que ainda faltam.
E na reflexão do aprendiz somos convidados a vivenciar a via sacra sobre a perspectiva de Cristo, e assim reconhecer nele a sua humanidade, afinal conseguimos compreender a dor física a que é submetido, as humilhações. E assim, a partir disto, reconhecer nele sua maestria, visto que reagiríamos diferente dele, talvez sentíssemos ódio, auto piedade, apontássemos um, ofendêssemos outro. Ao contrário do mestre que teve compaixão, que acolheu o ladrão, que não perdeu a dignidade até o fim. E não há nada de errado nisso, afinal, se agíssemos como ele, não seríamos nós discípulos, e sim mestres.
Devemos também vivenciar sobre a perspectiva daquele que traiu, julgou, condenou, riu, torturou e crucificou o Cristo. Afinal como culpá-los por isso, como poderiam saber que aquele era o filho de Deus? Mas terão que responder por seus atos, afinal todos ali sabiam que se tratava de um ser humano, e que apesar de qualquer coisa deveria ser tratado como tal. E aí, neste momento nos defrontaríamos em nós com aquele que julga, que condena, que sacrifica diariamente outros seres, com a falsa leveza de quem acaricia uma flor, mas com o peso de seus atos sobre si. Ah, também condenamos sonhos, julgamos alegrias, sacrificamos impiedosamente a paz e o altruísmo de outros. Porque insistimos nisso continuamente? Seria a necessidade de repetir a lição, e pela desatenção, pela distração com ovos e comemorações, não aprendemos e continuamos indefinidamente a repetir, repetir, repetir… Isso não seria por acaso condenar novamente e novamente Jesus à cruz?
E se mais uma vez vivenciarmos a via crucis, agora sobre o olhar do indiferente, que apenas acompanha, sem concordar, e nem tampouco rejeitar a situação. O que move esta pessoa? O que se passa em alguém que diante de tamanha violência não consegue saber se aquilo é bom ou ruim? Em que momento ela parou de fazer parte deste mundo, que o que acontece nele não lhe toca? Quando ela acreditou que não sentir é menos doloroso que sentir? Com que forças ela mantém o coração aprisionado, fazendo de seus músculos as grades da prisão que o mantém morrendo a míngua por crer em sua fragilidade, sem compreender que ele se alimenta das relações? Em que momento criamos isso em nós? Quando foi que um jogo de futebol, que um par de sapatos novos, passou a mobilizar mais nossa emoção do que a fome de alguém? Quais as barbáries que ignoramos em emoção? Quais absurdos aceitamos por educação? Quando foi que a vida permitiu nossa isenção com relação a um irmão? Quando vamos reconhecer que o medo da vida já é a própria morte?
E se continuarmos ir a diante em nossa vivência, e nos colocarmos no lugar daquele que acompanhou sofrendo, que por acaso apanhou por sua expressão. Aquele que chorou pelo Cristo, aquele que não aceitou, que reclamou. Estes eram poucos. Mas estes por ventura não teriam carregado a cruz junto a Jesus? Estes não teriam aliviado seu sofrimento, por ele ver que tudo valeu a pena, cada palavra, cada ato. que havia quem se compadecia com o sofrimento, que a humanidade ainda tinha salvação? Estes seriam o que desenvolveram coragem e mantiveram-se ao lado do Cristo na cruz, mas também do Cristo interior, não conseguindo aceitar nenhuma forma de violência. E em nós, quando permitimos que a sabedoria crística se expressasse através de nós? Quando, mesmo que todos dissessem o contrário, acolhemos o irmão que tropeçou, beijamos o que adoeceu em palavras, acariciamos o cheio de feridas? Quando assumimos o ensinamento cristão que é melhor ser julgado que julgar, é melhor ser agredido que agredir, é melhor morrer do que matar? Quando é que isso se reflete em nossas ações, pensamentos e palavras?
E se lembrarmos que Cristo é a personificação do amor no mundo, que é a própria compaixão, caridade e altruísmo. Então, enquanto humanidade, crucificamos o amor? Quando permitimos que o amor, a compaixão em nós fossem crucificados? Em que momento aceitamos que a compaixão bate de frente com nossas regras sociais, nossos sistemas econômicos? Como foi que pudemos aceitar isso até então?
E agora, diante de tudo o que reconhecemos em nós. Da indigestão que fica, do gosto amargo na boca. De tudo fora do lugar. Refletimos, não com a intenção do auto flagelo, mas o reconhecimento de onde estamos e de quem somos. Não caiamos em distrações externas, não percamos a oportunidade, não recusemos o convite.
Gisele Tavares Ricetti